Para o dia internacional da mulher, 8 de março de 2025 | Texto de Cristiana Bastos (Presidente da APA)

Somos espécie dimórfica, dizem-nos da biologia, como tantas outras: temos diferenças genéticas que nos arrumam, modo geral, em dois sexos, com algumas nuances e variações, como também em tantas outras espécies. O que fizemos disso como humanidade é toda uma outra história, e essa história tem sido contada pelos estudos de género que atravessam ciências sociais e humanidades, com grande intensidade e labor por parte da antropologia desde, pelo menos, os estudos culturalistas de Margaret Mead e colegas. É uma história em que se desmistifica muita da predestinação dos papeis de género à classificação de sexo, e em que se desmistifica, sobretudo, a associação de dimorfismos e diferenças biológicas a desigualdades e hierarquias sociais, económicas, políticas, cívicas.
Não faltam pelo mundo fora essas associações que hierarquizam, para baixo, a condição de mulher – simbólicas, como o “segundo sexo”; materiais, como a paga menor para trabalho igual; rituais, como a proibição de circulação em muitas cerimónias; políticas, como até muito tarde na impossibilidade de votar; e infinitas outras situações.
A quem andou pelos estudos de género, tudo isto parecia cognitivamente resolvido, encontrado um instrumento para dissolver, ou pelo menos mitigar, as desigualdades sociais que assim ossificam e ampliam as injustiças. Ou assim pensávamos, estivesse o mundo, como prometido, ou pelo menos desejado, a caminhar para mais justiça e bem-estar para toda a gente. Acontece que nem sempre assim é, e nos últimos anos a própria palavra “género” se tornou arma de arremesso e ataque conservador, inventada uma “ideologia de género” que estaria por trás dos males do mundo e, alvo favorito destas obsessões, tudo o que se refira a flutuações de género e tudo o que é “trans”. Levantaram-se novas guerras culturais e expandiram-se a outras fronteiras – alvo seguinte, a “critical race theory”, os programas de diversidade e inclusão.
Ninguém imaginaria a velocidade que alcançaram estes ataques, agora pseudo legitimados por um poder extemporâneo que proíbe palavras e corta financiamentos a tudo o que evoque um pensamento crítico sobre género e sobre a diversidade em geral. Primeiro atacaram o género; depois veio tudo o mais, numa grotesca tomada de poder de mandarins cibernéticos e empresários de casinos com cadastro.
Que fazer? Não recuar nem um milímetro. Manter-nos à tona, ou respirar debaixo de água enquanto esta tenebrosa onda passa, resistindo e mantendo o espírito crítico, mantendo o saber-fazer que, acreditem, pode ser creditado às mulheres que em todos os continentes e épocas o cultivaram perante as múltiplas adversidades, e de quem temos, entre nós, muito mas muito a orgulhar-nos: revisitemos as inúmeras etnografias feitas em Portugal, de norte a sul, trazendo à visibilidade esse mundo não documentado da resistência, labor, criatividade, inspiração, instigação, exemplo e permanência das mulheres de norte a sul do país.

Cristiana Bastos, março de 2025

Antropologia e Mulheres: lista [muito incompleta] de publicações portuguesas antropológicas sobre mulheres ou por mulheres antropólogas

Imagem de capa “Maria Teresa Horta ergue o cartaz ‘Mulheres uma força política’, ao lado de Maria Isabel Barreno, numa manifestação do Movimento de Libertação das Mulheres”, retirada de https://comunidadeculturaearte.com/as-tres-marias-o-antes-o-depois-e-o-impacto-das-novas-cartas-portuguesas/