Somos espécie dimórfica, dizem-nos da biologia, como tantas outras: temos diferenças genéticas que nos arrumam, modo geral, em dois sexos, com algumas nuances e variações, como também em tantas outras espécies. O que fizemos disso como humanidade é toda uma outra história, e essa história tem sido contada pelos estudos de género que atravessam ciências sociais e humanidades, com grande intensidade e labor por parte da antropologia desde, pelo menos, os estudos culturalistas de Margaret Mead e colegas. É uma história em que se desmistifica muita da predestinação dos papeis de género à classificação de sexo, e em que se desmistifica, sobretudo, a associação de dimorfismos e diferenças biológicas a desigualdades e hierarquias sociais, económicas, políticas, cívicas.
Cristiana Bastos, março de 2025
Não faltam pelo mundo fora essas associações que hierarquizam, para baixo, a condição de mulher – simbólicas, como o “segundo sexo”; materiais, como a paga menor para trabalho igual; rituais, como a proibição de circulação em muitas cerimónias; políticas, como até muito tarde na impossibilidade de votar; e infinitas outras situações.
A quem andou pelos estudos de género, tudo isto parecia cognitivamente resolvido, encontrado um instrumento para dissolver, ou pelo menos mitigar, as desigualdades sociais que assim ossificam e ampliam as injustiças. Ou assim pensávamos, estivesse o mundo, como prometido, ou pelo menos desejado, a caminhar para mais justiça e bem-estar para toda a gente. Acontece que nem sempre assim é, e nos últimos anos a própria palavra “género” se tornou arma de arremesso e ataque conservador, inventada uma “ideologia de género” que estaria por trás dos males do mundo e, alvo favorito destas obsessões, tudo o que se refira a flutuações de género e tudo o que é “trans”. Levantaram-se novas guerras culturais e expandiram-se a outras fronteiras – alvo seguinte, a “critical race theory”, os programas de diversidade e inclusão.
Ninguém imaginaria a velocidade que alcançaram estes ataques, agora pseudo legitimados por um poder extemporâneo que proíbe palavras e corta financiamentos a tudo o que evoque um pensamento crítico sobre género e sobre a diversidade em geral. Primeiro atacaram o género; depois veio tudo o mais, numa grotesca tomada de poder de mandarins cibernéticos e empresários de casinos com cadastro.
Que fazer? Não recuar nem um milímetro. Manter-nos à tona, ou respirar debaixo de água enquanto esta tenebrosa onda passa, resistindo e mantendo o espírito crítico, mantendo o saber-fazer que, acreditem, pode ser creditado às mulheres que em todos os continentes e épocas o cultivaram perante as múltiplas adversidades, e de quem temos, entre nós, muito mas muito a orgulhar-nos: revisitemos as inúmeras etnografias feitas em Portugal, de norte a sul, trazendo à visibilidade esse mundo não documentado da resistência, labor, criatividade, inspiração, instigação, exemplo e permanência das mulheres de norte a sul do país.
Antropologia e Mulheres: lista [muito incompleta] de publicações portuguesas antropológicas sobre mulheres ou por mulheres antropólogas
- Mulheres da praia- O trabalho e a vida de uma comunidade costeira portuguesa, Sally Cole (https://books.openedition.org/etnograficapress/3646?lang=en)
- Homens que partem, mulheres que esperam- Consequências da emigração numa freguesia minhota, Caroline B. Brettell (https://books.openedition.org/etnograficapress/1910?lang=en)
- Soajo. Entre Migrações e Memória, Colette Cailler-Boisvert (https://www.livraria-ler-com-gosto.com/en/soajo-entre-migracoes-e-memoria-e)
- O futuro é para sempre. Experiência, expectativa e práticas possíveis, Paula Godinho (https://www.atraves-editora.com/produto/o-futuro-e-para-sempre/)
- As Mulheres do Meu País, Maria Lamas (https://www.wook.pt/livro/as-mulheres-do-meu-pais-maria-lamas/59208?srsltid=AfmBOop-vzHzHkXLW5fV_XbPKKjGqcQBvQZUYNjsEsT0R_vUk6fakznC)
- Proprietários, lavradores e jornaleiras- Desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978, Brian Juan O’Neill (https://books.openedition.org/etnograficapress/1517?lang=en)
- Conflitos e água de rega- Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço, Fabienne Wateau (https://books.openedition.org/etnograficapress/2433?lang=en)
- Entre o Bairro e a Prisão- Tráfico e trajectos, Manuela Ivone Cunha (https://books.openedition.org/etnograficapress/476?lang=en)
- Águas que curam, águas que «energizam» : etnografia da prática terapêutica termal na Sulfúrea (Portugal) e nas Caldas da Imperatriz (Brasil), Maria Manuel Quintela, (http://hdl.handle.net/10451/312)
- Práticas da Cultura na Raia do Baixo Alentejo- Utopias, criatividade e formas de resistência, Dulce Simões (https://www.bertrand.pt/livro/praticas-da-cultura-na-raia-do-baixo-alentejo-dulce-simoes/26612561)
- Be Fu**ing Perfect. À procura da perfeição – da dieta à cirurgia plástica, Chiara Pussetti (https://books.openedition.org/etnograficapress/9208)
- Luz e Água: Etnografia de um Processo de Mudança, Clara Saraiva (https://museudaluz.org.pt/2023/05/04/luz-e-agua-etnografia-de-um-processo-de-mudanca/)
- Realizadoras Portuguesas- Cinema no Feminino na Era Contemporânea, Mariana Liz e Hilary Owen (https://www.ics.ulisboa.pt/livros/realizadoras-portuguesas)
- Mulheres e Associativismo em Portugal, 1914-1974, Anne Cova, Vanda Gorjão, Isabel Freire, Ana Costa Lopes, Natividade Monteiro, (https://www.ics.ulisboa.pt/livros/mulheres-e-associativismo-em-portugal-1914-1974)
- Marrocos no Feminino- Conjugalidade e família, Raquel Carvalheira (https://www.ics.ulisboa.pt/livros/marrocos-no-feminino)
- Género e Migrações Cabo-Verdianas, Marzia Grassi e Iolanda Évora (https://www.ics.ulisboa.pt/livros/genero-e-migracoes-cabo-verdianas)
Imagem de capa “Maria Teresa Horta ergue o cartaz ‘Mulheres uma força política’, ao lado de Maria Isabel Barreno, numa manifestação do Movimento de Libertação das Mulheres”, retirada de https://comunidadeculturaearte.com/as-tres-marias-o-antes-o-depois-e-o-impacto-das-novas-cartas-portuguesas/