A convite da APA, o sócio-presidente fundador João Pina-Cabral dá-nos o seu testemunho sobre as “origens” da associação e as relações entre a antropologia e a revolução.
A APA e a democracia: cinquenta anos depois
Acabam de passar cinquenta anos sobre a revolução democrática de 25 de Abril de 1974. A APA junta-se à larga maioria da população portuguesa para celebrar com gratidão e alegria a libertação das pessoas e instituições de Portugal das forças que oprimiram o país durante o meio século precedente. Cada um de nós tirará as conclusões que lhe compete tirar da diferença entre essas duas metades do último século, mas é certo e indubitável que, no que compete às ciências sociais em Portugal, as cinco décadas mais recentes foram marcadas por grande criatividade, por uma expansão e consolidação institucional significativas, e por um crescente reconhecimento a nível internacional.
Claro que nem tudo começou em Abril de 1974. Como não podia deixar de ser, as ciências sociais portuguesas estiveram diretamente envolvidas nos processos sociais que precederam a revolução, tanto colaborativamente como oposicionalmente. A opressão política e religiosa significou que, em Portugal, o período de crescimento e consolidação científica que se seguiu à Segunda Guerra Mundial um pouco por todo o mundo democrático, não teve lugar entre nós. Obras houve que, apesar de marcadas pelo seu tempo, merecem o nosso interesse; outras, porém, estavam de tal forma ligadas ao aparelho repressivo que preferimos ignorá-las.
Neste aspeto, nem todas as disciplinas seguiram o mesmo percurso. A sociologia (que, antes da revolução, cresceu sob o nome de ‘estudos sociais’), a geografia ou a história social tiveram uma evolução em relativa continuidade. Já o mesmo não se passou com a antropologia/etnologia. No nosso caso, a mudança de regime foi refundadora. Tal deve-se a dois fatores de natureza muito diferente. Enquanto, na sociologia, geografia ou história, figuras como Adérito Sedas Nunes, Orlando Ribeiro ou Vitorino Magalhães Godinho funcionaram como pontes de transição, a morte precoce de A. Jorge Dias em 1973 significou que os jovens que, no período a seguir à revolução, quiseram libertar a antropologia das peias colonialistas e fascistas, não tiveram uma figura tutelar na qual se apoiar.
Por outro lado, enquanto o regime salazarista tinha sido sempre muito ambivalente por relação à sociologia, ele tinha abraçado entusiasticamente a antropologia—tanto na figura de Gilberto Freyre e a promoção da ideologia lusotropicalista, como através de formas de engajamento direto de antropólogos no aparelho colonial (tanto a nível civil como militar e policial). A turbulência da mudança de geração que ocorreu no seio da principal escola de ciências sociais da época (ISCSPU) só agora começa a ser mais bem conhecida (e.g., Leal 2024). A subsequente retomada do controle dessa escola pela velha elite nos anos que se sucederam a 1979 significou que não foi aí que a nova antropologia, mais internacionalizada e profissionalizada, encontrou espaço para crescimento. De facto, a nova antropologia emergiu no departamento de Antropologia do ISCTE, no Instituto de Ciências Sociais e no departamento de Antropologia da Universidade Nova de Lisboa, onde um grupo de professores treinados no estrangeiro vieram criar licenciaturas e programas de pós-graduação inspirados pelas correntes internacionalmente vigentes (vide Pignatelli [ed.] 2014).
A fundação da APA, nos finais dos anos 80, respondeu ao ímpeto criado pela emergência de uma primeira geração de licenciados treinados nos novos moldes. Com a entrada de Portugal no que viria a ser a União Europeia, o aparelho científico português estava em franco crescimento e consolidação. Era possível pela primeira vez obter projetos de investigação, bolsas de pós-graduação e apoios financeiros às instituições científicas. Renovou-se, entretanto, o ensino da antropologia na Universidade de Coimbra e foi a partir das discussões ligadas à criação desse novo curso que a APA deu os seus primeiros passos em 1989. No ano seguinte, a também recém-fundada Associação Europeia de Antropólogos Sociais escolheu Coimbra como o local para a sua conferência fundadora—cuja memória marcou decisivamente a antropologia europeia nas décadas que se sucederam.
Também o encontro transatlântico veio dar nova força à antropologia que a democracia produziu em Portugal. Após a redação da constituição de 1988, viveram-se no Brasil anos de notável criatividade intelectual. O contacto com a antropologia brasileira, cujo tamanho e pergaminhos eram muito superiores à nossa, foi lançado em 1994 por uma reunião promovida pela Associação Brasileira de Antropologia no Rio de Janeiro. Foi assim que, a partir dos meados da década de 1990, a antropologia portuguesa se entrosou com a sua irmã lusófona num abraço que continua hoje a dar frutos (vide Pina-Cabral 1998, 2004).
Na década de 1980, levada pela necessidade de entender quais os novos caminhos que o nosso país iria traçar, a antropologia em Portugal tinha dado ênfase aos terrenos portugueses. Na década de 1990, com o fim das guerras civis em África, a democracia em Cabo Verde, o acordo de transição de poderes em Macau (1987), os governos brasileiros de Lula que favoreciam os diálogos no interior da lusofonia e, finalmente, a independência em Timor, os antropólogos portugueses começaram a ser chamados para novos terrenos, onde podiam desempenhar um papel importante como mediadores no aprofundamento de uma compreensão decisivamente pós-colonial. Esse processo de reflexão sobre o passado colonial e as peias que este lançava sobre o nosso presente (nomeadamente através da intensa circulação de pessoas no interior do espaço de língua portuguesa) levou a um aprofundamento da relação entre a história e a antropologia, com resultados notáveis em muitos aspetos, nomeadamente ao nível dos estudos sobre património e sobre etnicidade.
É só em torno à crise europeia de 2008-2012 que assistimos ao emergir de novas preocupações temáticas, mais uma vez presas à melhor compreensão da nossa realidade social interna. Contudo, os temas da migração, da precariedade, da crise climática, da habitação, das políticas de desenvolvimento, da saúde, da alimentação, das novas realidades de género emergentes não são temas especialmente portugueses. Nesse aspeto, a antropologia portuguesa é crescentemente parte integrante do diálogo científico internacional, para o qual tem contribuído com aportes temáticos—nomeadamente através na produção de estudos etnográficos de alto gabarito—mas também com discussões mais gerais sobre teoria antropológica e sobre a história da nossa disciplina.
Vivemos um momento especialmente preocupante para as sociedades que foram moldadas em regimes democráticos. A inevitabilidade da democracia como condição política futura está posta em causa. O crescimento económico que emergiu na segunda metade do século passado, ligado ao capitalismo na sua vertente neoliberal, perdeu as condições de futuro face tanto à crise ambiental como à acumulação desenfreada de capital. Compete às ciências sociais dos países e dos povos que querem proteger o modelo social humanista e democrático que inspirou a emergência da União Europeia saber responder aos novos desafios. Ora, não é fácil apurar quais os passos necessários para o desenvolvimento de, por um lado, novos processos institucionais que levem a democracia muito para lá do simples e regular exercício de voto (integrando na democracia a justiça, o emprego, a saúde, a educação, a ciência e a habitação) e, por outro lado, o desenvolvimento de um regime económico radicalmente novo que, assentando sobre processos de degrowth, permita parar a destruição física do nosso planeta. Não basta perguntarmo-nos porque é que as populações europeias votam crescentemente por soluções políticas que põem em causa o sistema democrático do qual elas são as principais beneficiárias. É urgente compreender os processos que contribuem para isso se queremos que os benefícios que marcaram os últimos cinquenta anos em Portugal não se desfaçam em fumo.
Não será a antropologia a única disciplina a contribuir para um tal projeto. Contudo, há um aspeto que merece especial destaque: a herança ecuménica (de ‘de-etnocentrificação’) que a tradição analítica antropológica transporta e a herança de questionamento direto que a tradição etnográfica transporta serão cada vez mais preciosas nas décadas que se avizinham. A inteligência artificial (para usar um termo sumariante) é o principal desafio intelectual às ciências sociais de hoje. Os efeitos distópicos da mecanização da análise social são patentemente visíveis. Os que, na viragem do século, abraçaram formas de relativismo radical e de anti-humanismo em nome de uma espécie muito antropológica de narcisismo ético, começam agora a ver os perigos de abandonar o realismo universalizante que subjaz à própria noção de ciência—como dizia Foucault no fim da sua vida, ‘há que proteger a sociedade’. Face aos insondáveis processos de comunicação mediatizada que caraterizam a nossa época, nunca na história da humanidade a hegemonia foi tão mediada, nunca o poder foi tão naturalizado, nunca a dominação se soube tão bem esconder. Só o método de investigação etnográfico—sobretudo quando envolve contacto direto e intensivo entre pessoas e situações—prometem poder ultrapassar tais desafios. Para poder olhar para o futuro, a antropologia de hoje tem de reencontrar a sua herança universalista; ultrapassando e, ao mesmo tempo, abarcando o humanismo ecuménico que é a única justificação para a sua existência enquanto disciplina científica.
João Pina-Cabral
Junho 2024
Referências
Leal, João. 2024. “Introdução, a Antropologia e revolução: do ISCSPU ao ISCSP”. Etnográfica [Online], número especial.
Pignatelli, Marina (ed.). 2014. ‘Antropologia em Portugal nos últimos quarenta nos’, Número especial, Etnográfica 18 (29): 301-440.
Pina-Cabral, João. 1998. “A Antropologia que a Democracia Produziu.” Trabalhos de Antropologia e Etnologia 38 (3-4): 117-129.
Pina-Cabral, João. 2004. “Uma história de sucesso: a antropologia brasileira vista de longe” in Wilson Trajano Filho e Gustavo Lins Ribeiro (org.s) O Campo da Anthropologia. Recife: ABA.